Reflexões baratas e sentimentos por definir
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Reflexões baratas e sentimentos por definir

Texto que servirá como voice over do documentário a realizar:

Sob um clima melancólico, vazio, sem nada para contar encontramos o bairro do Arco do Cego. Pertinente será dizer-vos que a sonolência e a apatia se instalam quando deambulo pelas ruas de um bairro adormecido. Vejo um homem de idade sentado num banco de jardim que à sua maneira se inclui no silêncio do espaço, como se aquela ausência de qualquer atitude ou acontecimento se tivesse colado ao seu modo de estar. Talvez este facto lhe agrade, talvez não. Talvez a sua vida de 30 anos neste sítio tenham mudado a sua personalidade, talvez essa pequena eternidade o tenha acalmado, lhe tenha retirado a a euforia da vida e o entusiasmo pelos dias de hoje. Porém, para mim, esta comodidade não é suficiente.

Entro num dos dois cafés do bairro e sou praticamente afastado por um vento cheio de nada. Sem clientes, sem sem o tilintar das colheres nas pequenas chávenas de café, sem os risos repentinos de conversas cúmplices entre amigos, sem vida, sem nada que me mostre o conceito comum de aquilo que é um bairro.

Os jardins são o primeiro local que me transporta para uma mudança. É estranho compreender que se me sentar num dos bancos dos jardins sou confundido com dois mundos que nada têm em comum: atrás de mim, fora dos limites do bairro, capto um ruído imenso, um desassossego incansável uma agitação própria, um cruzamento de ações e pensamentos, e à minha frente, a uma realidade completamente distinta, na qual o maior momento de agitação se remete para o voo de um pombo.


Ao avançar para dentro do bairro começamos a perceber que nem tudo é igual. Existem espaços de concentração que de distanciam um pouco do conjunto calmo do bairro. Em certas horas, a praça central em frente ao liceu oferece-nos um ambiente preenchido com gerações e atitudes diferentes. A vida que nasce num local é preservada e agarrada pelas pessoas que o partilham. As crianças são sem dúvida um poço infinito de vida, onde quer que estejam tem sempre uma atitude que se faz sentir presente. Mas notem que assim que as pequenas vidas se afastam, afasta-se também a animação do bairro, voltamos a um local morto, apático. O som desvanece, e o movimento também. Envolve-me uma solidão de novo, como se o bairro fosse todo para mim, e é demasiado.



Mas, ao contrário do descanso que a maior parte do bairro mostra, a igreja é uma força da natureza. É completa de uma paróquia ativa que todos os dias trabalha para criar dinâmicas novas que proporcionem ao bairro conceitos que se foram distanciando bastante: a noção de família, de solidariedade, de partilha, de amor ao próximo. São inúmeras as tentativas para fazer renascer o espírito amigo e cúmplice do bairro do Arco do Cego, porém, o pequeno dormitório deserto não parece corresponder, sendo que a população que o habita demonstra o seu descontentamento e nota, ainda o enormíssimo contraste entre o antigamente e o hoje em dia. Com o exemplo da paróquia de Sao João de Deus, o meu papel só poderia ser de empreendedor. Marcar a diferença e intervir no bairro tem que ser uma boa solução. Destabilizar a vida rotineira daqueles que se acomodaram ao silêncio e avançar como personagem para um sitio que até ali era pouco, poderia suportar a minha intenção. Invoco assim uma intervenção, uma provocação. Quero e pretendo incomodar, fazer estranhar, ser estranho, mostrar que as coisas que têm que mudar. Vou tentar que a apatia não me envolva, não quero ser mais um a seguir o caminho do adormecimento. Não quero que este bairro corra para o abismo do esquecimento, não quando tem tanta história para contar.


O bairro do Arco do Cego tem sido para mim um local de dificil conhecimento. A calma o sossego fazem com que todo o contato com quem pouco frequenta o bairro seja complicado. A minha intenção foi criar uma dinâmica que mostrasse o melhor que o bairro tem. No início, para mim não tinha qualquer ponto de interesse, não havia nada que puxasse por mim, mas pensar em pequenos detalhes como a zona do bairro ou a hora a que visitava o bairro tornaram-se aspetos de extrema importância. No entanto, só consegui adquirir estes conceitos, após muitas idas ao bairro, muitas conversas, muitas reflexões. É sempre complicado criar empatia com alguém que não faz parte daquele ambiente, que nasceu e cresceu com muitos valores diferentes dos nossos. A minha ação podia realmente ser um contraponto ao caminho que o bairro tinha tomado até hoje. Numa primeira abordagem podia ser vista como um escape, uma brincadeira com a minha falta de conhecimento, mas não foi de maneira alguma. Fundamentalmente, foi um excelente meio para ver o bairro de outra perspetiva.



Pensar e questionar o que nos rodeia é a base para o começo de cada projeto. A minha atitude tem que ser esta em todas as situações. Há que saber escolher os melhores momentos para poder ser objetivo, para intervir e evoluir tanto como aluno, como pessoa. Por vezes não é de todo positivo fazer juizos de valor sobre alguém, se o nosso objetivo é, com esse alguém, criar uma relação. Saber colocar os conhecimentos e opiniões de lado é muito importante quando nos encontramos perante um confronto direto, pelo que devemos fazer a reflexão desses valores, mais tarde, em, por exemplo, momentos como este, quando revejo um pouco do meu trabalho e reflito como identidade, sobre o que fiz. Não sinto que errei com o bairro, apesar de todos os juízos e adversidades. Admito ainda que o acaso trouxe consigo fantásticas surpresas que não foram nem pensadas, nem explicadas, nem prepositadas, apenas aconteceram, enriquecendo (demasiado, entenda-se) o meu mergulho num bairro tão pacato, o que me deixa com o seguinte dilema: será que forçar os acontecimentos estará de alguma forma errado ou poderá ser visto como uma opção às barreiras que se colocam no caminho? 

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